Newsletter APEES nº25 | 30-09-2020
Editorial
A edição académica depois da pandemia
No passado dia 3 de junho, Ewen Callaway publicou um artigo na revista Nature1 , numa série destinada a refletir sobre a ciência após a pandemia, em que aborda as consequências desta sobre a edição académica. O artigo intitula-se “Will the pandemic permanently alter scientific publishing?” e está disponível aqui: https://www.nature.com/articles/d41586-020-01520-4. Tal como a Nature, outras revistas e pessoas têm escrito sobre a matéria, sendo esta uma problemática muito atual, que nos interessa como editores.
Basicamente, a pandemia introduziu pressões de mudança sobre o sistema de edição académica, tendo em vista o encurtamento dos processos de publicação e a disponibilização gratuita online dos trabalhos produzidos, que provavelmente estão para ficar. Longe vai, pois, o conselho de Horácio aos autores para que deixassem os seus originais ganhar lastro nas arcas ou gavetas pelo menos durante nove anos, para que não assumissem posições que viessem mais tarde a ser consideradas precipitadas. No auge da pandemia, muitos editores académicos decidiram acelerar os processos de publicação, com vista, nomeadamente, a dar um contributo no combate à doença, multiplicando-se iniciativas para garantir publicações rápidas sujeitas a revisão por pares. Daí que a Nature tenha perguntado pertinentemente que ciência teremos depois da pandemia. Segundo a prestigiada revista científica, a crise provocada pela COVID-19 mostrou que a ciência pode ser tão rápida e aberta quanto os cientistas estejam dispostos a querer.
Durante a primeira vaga da crise, no primeiro semestre de 2020, muitos foram os cientistas que partilharam resultados preliminares das suas pesquisas antes da publicação formal, nomeadamente em “sites” e repositórios institucionais, em linha com o que matemáticos e físicos faziam há décadas. Encurtaram-se os prazos de análise das propostas dos autores através da colaboração voluntária dos revisores e publicou-se mais. Assim, editoras e revistas prestigiadas de todo o mundo disponibilizaram a investigação produzida sobre o coronavírus de forma rápida e gratuita, tendo encorajado e, em alguns casos, exigido a pré-publicação dos artigos em servidores de livre acesso.
Verdade seja dita que esta tendência já vinha de trás, tendo a pandemia apenas acelerado as práticas existentes. De acordo com Cameron Neylon, investigadora em comunicação académica na Curtin University, da Austrália, citada no artigo referido, “Se pensamos que a abertura da comunicação tem valor numa crise, deve naturalmente ter valor em tempos normais”. Porém, ainda segundo a autora, mais rapidez e mais abertura não significam necessariamente uma revolução no setor da edição académica, porque tal só acontecerá se as mudanças forem estruturais. Ora, para que tal aconteça, o sistema atual de edição académica terá de mudar totalmente para recompensar a partilha aberta e antecipada das descobertas científicas pelos cientistas, dando a estes incentivos para que comuniquem o seu trabalho dessa forma.
É certo que alguns financiadores e instituições de investigação com peso advogam essa via liberalizadora, mas há que ter em conta a decisão dos editores. Assim como a crise desencadeou a necessidade de publicações céleres, de livre acesso e gratuitas, também pode promover outras forças igualmente com impacto nas políticas de comunicação científica. É de ter em conta que a recessão económica implicará muito provavelmente uma redução dos orçamentos para a investigação científica, o que terá implicações no setor da publicação científica, nomeadamente criando obstáculos à tendência referida.
Além disso, verifica-se que os resultados dos processos de revisão rápida não são os mesmos dos processos de revisão tradicional, tendo os editores e os autores consciência desse facto. Foi objetivo dos editores, no apogeu da crise, responder a uma necessidade imediata da sociedade, mas isso não significa que os trabalhos publicados nesse período resistam ao teste do tempo necessário para que se possa dizer que eram relevantes cientificamente. É por isso que há quem entenda que a tendência referida poderá não continuar depois da pandemia, dado que os próprios cientistas desejam produzir trabalhos que sejam revistos por pares segundo processos rigorosos. Se a revisão puder ser feita mais rapidamente do que no passado, será excelente, mas continua a ser necessária.
De salientar ainda que durante a pandemia se deu prioridade à revisão dos artigos sobre a COVID-19, mas não poderá continuar a ser assim no futuro, dado que há outras matérias relevantes. Mas o que sobretudo releva aqui é que a pressão introduzida no sistema de edição académica para a diminuição dos prazos de publicação, com implicações sobre as próprias formas da publicação, poderá não ser sustentável. Um estudo publicado no bioRxiv de maio desde ano2 conclui que várias revistas médicas publicaram artigos sobre o coronavírus baixando para metade o tempo médio do processo, em grande parte devido a formas de revisão rápida por pares. Porém, segundo Stefano Bertuzzi, presidente-executivo da American Society for Microbiology, sediada em Washington, é improvável que a revisão por pares possa funcionar a este ritmo. Na sua opinião, não há espaço para melhorias de eficiência regulares nesta matéria, defendendo que foi uma situação de emergência irrepetível.
Claro que podem ocorrer melhorias nos processos editorais. Por exemplo, o artigo sugere que os esforços feitos no tempo de pandemia mostram que é possível fazer uma revisão completa por pares fora dos mecanismos organizados pelas revistas científicas, o que deve ser tido em conta na preparação do futuro da edição científica. Já Robert-Jan Smits, presidente da Eindhoven University of Technology, que idealizou o "Plano S" da Comissão Europeia para a publicação em acesso aberto, insiste que a crise do coronavírus será vista no futuro como o evento que determinou que a ciência em geral passasse a promover publicações rápidas e abertas. “É o empurrão final que é necessário”, diz ele.
Estas questões têm merecido ampla discussão na APEES, que se aprofundará nas próximas semanas. É nossa convicção que das respostas que formos capazes de dar em conjunto passará o futuro das editoras académicas, que vivem um período crucial. Estamos atentos e vamos procurar as melhores respostas.
1 Ewen Callaway, Nature, 582(7811): 167-168, 2020 06. doi: 10.1038/d41586-020-01520-4.
2 S. P. J. M. Horbach, “Pandemic Publishing: Medical journals drastically speed up their publication process for Covid-19”. In: bioRxiv 2020.04.18.045963; doi: https://doi.org/10.1101/2020.04.18.045963. O estudo foi depois republicado em Quantitative Science Studies doi: 10.1162/qss_a_00076.
Presidente da direção APEES
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